Colunas COLUNA
“Homens santos e porcos sujos” — por Vanderli do Carmo Rodrigues
Crônica de Vanderli do Carmo Rodrigues reflete com humor e ironia sobre a hipocrisia humana diante da morte e o valor que damos às pessoas — e aos porcos — apenas depois que morrem
06/11/2025 14h08
Por: Redação Fonte: Garça em Foco

Dizem que todo mundo que morre vira santo! E não é por menos, pois quem tem coragem de ir a um velório, sentar-se de frente para o defunto e desfiar todo o rosário de canalhices do pobre? O coitado está morto... Vamos respeitar, pois não há condição pior neste mundo aos olhos humanos do que a condição de morto. 
Morreu tão jovem!... Ainda ontem ele estava vivo... Coitada, nem teve a chance de casar... Coitado, nem teve a chance de comprar o carro novo... Ou de conhecer o neto... Ou de viver mais um pouco... É de dar pena!
Para morrer existe um requisito primário, que é o de estar vivo, e talvez seja exatamente neste ponto que a morte humana nos cause tanta empatia, pois sabemos que a cada dia vivido estamos mais próximos da ceifadora implacável.
E não importa o quanto uma pessoa te desagradou em vida, no momento da morte, vendo o desafeto inerte e inofensivo, aguardando paciente enquanto as velas queimam, os risos das piadas são inutilmente contidos e algumas lágrimas já secam, você sempre encontrará algo de bom para falar dele. Quem dera ter dito em vida, quem dera ter dado aquele abraço, dito aquela palavra... Bom... Não deu! Somos humanos, falhos, limitados, e estamos vivos... Por enquanto...
Em alguns momentos eu me questiono o que dirão de mim quando eu tiver deixado este mundo. Seu eu morresse hoje, aqui em Garça, eu teria muitas referências para ser lembrada; a mulher que fazia hambúrgueres veganos, ou ainda a mulher que escreve para o jornal, ou a mãe do Miguel e Emmanuel...  Lá em Bastos, onde passei quase toda minha vida, eu seria a filha, a irmã, tia, amiga ou simplesmente a mulher que fazia vestidos de noivas... E se eu viver bastante, terei um pouco mais de história para ser lembrada sobre o meu caixão. A verdade é que as pessoas terão muitas coisas boas – nem todas verdadeiras – para dizer sobre mim, e com certeza, coisas que eu gostaria muito de ter ouvido em vida. 
Dizem que homem é igual a porco, só sabemos o valor depois de morto. 
Nos dias atuais, onde o avanço moral já nos impede de usar de maledicência contra as pessoas mortas, tendemos a elogiar, pela dor, pela culpa, ou mesmo para entrar no papo fúnebre; há a necessidade quase que obrigatória de ser incoerente com o defunto, que se estiver por perto ouvindo, vai ficar com sérias dúvidas se é realmente o seu corpo que descansa naquele caixão, talvez ele até dê uma conferida... vai que errou de velório... 
Mas antigamente, onde ouvir a consciência era privilégio para poucos, histórias eram criadas e o morto caluniado, desmascarado, como se além de morrer em corpo, ele precisasse morrer na memória de todos também. E com isso algumas coisas que deveriam ser enterradas com ele acabavam descobertas, e era nessas horas que as velhas rixas de família, viúvas extraconjugais e credores se manifestavam. Além das indesejadas mulheres rodeadas de barrigudinhos remelentos que apareciam para chorar sobre o caixão abalando fortemente a credibilidade do defunto, sempre tinha espaço para se disputar alguns bens, nem que fossem algumas roupas rotas ou parcas moedas.
Hoje ainda brigamos por ninharias, antes mesmo que o defunto tenha se dado conta da sua condição de habitante do além, mas vamos admitir que atualmente somos mais educados nos velórios, ao menos tentamos...
E o que o injustiçado do porco tem com tudo isso? 
Nada, coitado... Mais uma vez está pagando o preço por servir de alimento e ser um animal, pois se não há condição pior nesse mundo para o ser humano do que a de um humano morto, não há condição que o agrade mais do que um morto animal... De preferência bem temperado e assado. 
E não importa quão inteligentes, amorosos e sociáveis eles sejam, sempre foram tidos como animais sujos. Dizem que eles comem de tudo, desde urina, vômito a fezes, e só para não ficar dúvida, eu estou falando dos porcos. 
Justificável essa atitude pouco higiênica dos suínos. Sendo eles criados em lugares fétidos e sem espaço ao menos para se moverem, sendo as fêmeas obrigadas a amamentarem seus filhotes através de uma grade, não lhes resta muita alternativa além de vomitar e comer excrementos, e com isso o pobre animal segue pagando o preço da sua condição de ser porco. Não era raro, dado às condições insalubres que lhes eram impostas em vida, que depois de mortos se constatasse que eles possuíam doenças, e inúmeros tipos de vermes, e sua carne ser então considerada totalmente imprópria para o consumo. Diante da sua inutilidade como alimento, de ícone de sujeira em vida, incoerentemente ele virara produto de limpeza em morte, ao ser transformado em sabão. Era depois de morto também que se avaliava o seu peso, a quantidade de banha... Sendo assim, seu verdadeiro valor só era conhecido depois que ele morria, assim como alguns homens.
E você pode até achar um absurdo o comparativo, mas não há muita diferença entre velórios e churrascos; ambos reverenciam a vida sob a perspectiva de um morto; em ambos os casos o morto é a alma, ou o corpo da festa, e é sobre ele que se debruça, e a conversa segue dia ou noite adentro.
Se as mazelas morais e físicas de homens e porcos só são conhecidas com sua morte, não espere a morte chegar, conheça-o em vida, procure saber das suas dores, suas limitações e angústias, olhe-o nos olhos, saiba onde ele vive e se tem condições salubres para esse viver, e quem sabe depois de conhecer o vivo, você talvez nem queira vê-lo morto, talvez queira ser um amigo, cuidar dele... E só para não ficar mais nenhuma dúvida, aqui eu ainda estou falando dos porcos!

Vanderli do Carmo Rodrigues