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“Um choque cruel de realidade” — por Edgard Cotait

Atravessando fronteiras e consciências: um dia de contrastes, desafios e lições inesquecíveis no interior da Bolívia

Por: Redação Fonte: Edgard Cotait
20/05/2025 às 17h13
“Um choque cruel de realidade” — por Edgard Cotait

Em uma viagem planejada entre 3 amigos para o interior da Bolívia em 2008, logo já no primeiro dia de viagem a moto de nosso colega Ramon apresentou um sério problema de embreagem em São José do Rio Preto/SP, onde dormimos. Infelizmente, não deu certo o conserto por falta de peças, e seguimos apenas eu e o Nelson, visando manter o cronograma, e já no dia seguinte precisamos percorrer os 1.376 quilômetros que restavam até Cáceres/MT, em duas Yamahas XT660 R. No dia seguinte, saímos logo pela manhã, e logo ao entrarmos no país pela cidade de San Mathias, aquela região boliviana revelou-se ser muito pobre e com altos índices de violência (região de fronteira). Logo na entrada da cidade, um agricultor brasileiro em uma camionete nos alertou para que retirássemos os capacetes, pois recentemente havia ocorrido um assalto seguido de morte em um posto de gasolina local, na qual os bandidos utilizaram uma moto, e a polícia estava autorizada para atirar em qualquer suspeito. Tentamos agilizar o possível os trâmites de aduana e de imigração, porém, assim mesmo tivemos que aguardar a siesta, que é uma tradição cultural onde é comum um período de sono após o almoço. O funcionário chegou às duas e meia da tarde, fizemos a papelada e abastecemos as motos em um “gazolinero” (pessoas que vendem gasolina e diesel nas suas casas), pois os postos da cidade estavam desabastecidos de combustível. Mesmo já sendo o meio da tarde, optamos por sairmos rapidamente de lá. Logo saímos da cidade e chegamos em uma estrada de terra que ficava numa área pantanosa, sendo construída sobre uma plataforma (talude) mais alta, semelhante a grande parte das rodovias construídas pelo exército brasileiro, no Mato Grosso do Sul, só que sem pavimentação.
Ainda nas cercanias da cidade, passamos por vários grupos de pessoas vestindo roupas puídas, que estavam pescando nas águas represadas pelos taludes mencionados acima, à beira da estrada. Depois, viemos a perceber que aquela pesca não se tratava de diversão, mas sim em busca por alimentos. Foram alguns quilômetros passando por esses grupos. Andamos por aproximadamente 100km, quando de repente numa reta, avistamos ao longe a silhueta de duas pessoas caminhando à beira da estrada. Conforme fomos nos aproximando, já era possível perceber que se tratavam de dois jovens bolivianos, na faixa de 15/16 anos. Só bem mais de perto pude notar que pela semelhança, provavelmente eram irmãos. Suas feições, em que pese alguma semelhança com os nossos indígenas, eram acentuadamente típicas dos indígenas da região misturadas com o povo dos Andes. Já chegando mais próximo é que foi possível notar que estavam trajando apenas camisetas, as quais mantinham esticadas para baixo, tentando cobrir suas partes íntimas. Aquela situação me pegou muito de surpresa, foi mesmo um choque. Óbvio, estavam super constrangidos. Mas certamente, não estavam mais do que a nós próprios. Passamos por eles sem nos olhar nos olhos diretamente, ainda que eles nos acompanhassem de "rabo de olho", de cabeça baixa, creio eu que por vergonha, porém bastante curiosos com a nossa presença e principalmente pelas nossas motos, pois na região haviam apenas as de baixa cilindradas. Tentamos simular alguma naturalidade para não pesar ainda mais aquela situação, ou até mesmo, que não havíamos notado a falta das vestimentas. Mas foi difícil, muito difícil mesmo, confesso. Naquele momento, pego de surpresa, eu não soube o que fazer. Só bem mais a frente é que me "caiu a ficha", e cheguei à conclusão, bastante arrependido, de que eu deveria ter parado e lhes oferecido alguma calça ou camiseta que carregava comigo. Porém, já era tarde demais, infelizmente. A vida seguiu...
Os ponteiros do relógio pareciam estar “nervosos”, e a noite caiu rapidamente. Aquela região era conhecida como perigosa, por conflitos de terras e de madeira, mas a estrada de terra e com vários bolsões de areião não nos permitia andar mais rápido. Em dado momento avistamos uma carreta carregada de madeira, e que não conseguíamos ultrapassar, seja pela estrada estreita, ou mesmo pelo pó levantado pelos 12 pneus, o que saturavam o ambiente. Era colocar a moto em posição de ultrapassar, mas terminava não sendo possível de se ver nada a frente, se haviam buracos, areião, ou mesmo veículos em sentido contrário ao nosso. O motorista parecia não fazer questão nenhuma em nos ajudar. Um bom tempo se passou até que resolvemos arriscar e passar na base do “seja o que Deus quiser”. Mais à frente, precisamos de reabastecer os tanques. Conseguimos gasolina em um casebre à beira da estrada. Eram somente a mãe e seus filhos pequenos. Ela, não conseguiu esconder o desconforto e o medo pela nossa presença. Motos reabastecidas, e já perto da meia-noite alcançamos nosso destino no mesmo hotel em que eu já havia me hospedado anteriormente, na cidade de San Ignácio de Velasco. Já em segurança, antes de dormir, repensei em tudo o que vi e vivi durante esse dia. Tirei lições e enxerguei as oportunidades que a vida nos oferece para podermos ajudar ao próximo. Aqueles jovens carrego comigo até hoje, mesmo sem trocar uma única palavra com eles. Isso mostra o quanto uma viagem pode transformadora...

Até a próxima!

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Quilometragem do segundo dia
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Caminho de Cáceres para a Bolívia

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Aduana e migraciones boliviana
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Entrada de San Mathias

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A amazônia, em território boliviano! Região nordeste daquele País. Matas relativamente bem conservadas e estradas precárias...

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Pequeno pueblo boliviano na hora da siesta

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Pequeno pueblo de Carme del Ruiz

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Hotel, em San Ignácio de Velasco

 

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